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Foto do escritorRosa Araujo

Fúria Verde

“A natureza não se vinga,

apenas devolve o que não lhe pertence”*

Rosa Araujo


Era tudo muito estranho naquele povoado. De uma hora para outra, as casas começaram a desparecer como se fosse mágica.

Todos se perguntavam qual seria a próxima, qual era o porquê e a lógica desses sumiços.

Muito se especulava, mas, certeza, certeza mesmo, ninguém tinha de nada.

Tudo começou há muito anos atrás, em uma madrugada de lua minguante. Estava tudo muito escuro e todos, ou quase todos, dormiam. De repente, um grito agudo atravessou o silêncio. Os moradores do povoado saíram a rua, desorientados, querendo entender de onde veio aquele barulho tão assustador.

Ao olhar em volta, deram com Luzia estatelada, a boca aberta, paralisada no grito que dera. No lugar de sua casa, estava uma fenda aberta na terra, grande como um abismo sem fim. Ao olhar para dentro daquele buraco, não se via nada, somente o vazio. Onde foi parar a casa de Luzia? E sua família que estava dormindo? Teria sido tragada para dentro do abismo? 

Todos olhavam para aquilo sem entender, sem saber o que fazer primeiro, se acudiam a mulher, se desciam pelo buraco abaixo para procurar a casa, se procuravam a família dela...uma consternação geral.

No meio daquela barafunda apareceu D. Mati, uma moradora da floresta vizinha ao povoado. Era considerada por muitos como uma sábia espiritual.  Ela olhou para a fenda na terra, respirou fundo, sentindo o cheiro do solo marrom avermelhado e disse:

- A Mãe Terra veio cobrar o tributo que sempre lhe foi negado. Vocês deveriam cuidar do solo em que constroem suas casas. Só desmataram e desmataram, sem se preocupar em plantar mais árvores. Ela se cansou de ser generosa com vocês. Agora, é tempo de vocês começarem a se reconciliarem com ela. Se não começarem a plantar mais árvores, as casas continuarão a sumir.

Todos se entreolharam assustados e prometeram cuidar do povoado, reflorestar e trazer o verde de volta ao lugar.

O tempo passou. Muito se procurou a família de Luzia, mas, nunca foi encontrada. A mulher resolveu ir embora para nunca mais voltar e todos, aos poucos, foram esquecendo daquela estranha madrugada. 

Nada foi reflorestado. Nenhuma árvore sequer foi plantada no povoado. Começaram a abrir mais e mais clareiras, invadindo inclusive a floresta onde D. Mati morava.

A sábia, preocupada com o desmatamento desenfreado, foi ter com o pessoal do povoado que estava virando uma pequena cidade. Relembrou aos mais velhos o que havia acontecido naquela madrugada, porém, escarneceram dela. Triste, a velha senhora só pode dizer:

-  Depois, não digam que não foram avisados.

E se retirou floresta adentro.

Na mesma noite, uma fenda enorme se abriu no meio da praça. Engoliu o coreto, os balanços das crianças e o chafariz. Outra, rasgou o chão da rua principal e tragou a escola e a prefeitura, mais uma, mais larga ainda do que as outras, partiu a estrada principal, isolando um lado da cidade. Muitos carros e caminhões foram tragados para dentro desta fenda maior.

Na manhã seguinte, as pessoas que restaram estavam tão apavoradas que não sabiam o que fazer. 

Chamaram a televisão, pediram ajuda do governo, dos cientistas. Muitos estudos foram feitos, mas as fendas continuavam a se abrir e a tragar tudo o que estava no seu caminho.

Lembrando-se das palavras ditas por D. Mati, Tita, uma adolescente que morava em uma casa prestes a deslizar para dentro de uma enorme fenda aberta no seu quintal, se lembrou de umas mudas de árvores de cupuaçu antigas, que seu pai havia plantado em umas latas que estavam atrás da casa.

Pegou duas latas e saiu de casa. Na fenda feita na praça, plantou as duas árvores, fechou os olhos e fez uma prece pedindo perdão a Mãe Terra por todo o mal causado pelas pessoas do povoado. Chorou muito, implorando que sua casa fosse levada pela fúria da natureza.

Quando Tita abriu os olhos, a o lugar da fenda onde ela tinha plantado os dois pés de cupuaçu se fecharam. Ela não acreditou naquilo! A Mãe Terra havia aceitado o seu pedido de desculpas! Olhou para o lado e viu D. Mati ao seu lado. A senhora pegou as duas mãos da menina e disse: - Vá, e diga as pessoas que basta fazerem a coisa certa, como você fez. 

Hoje, no lugar do povoado, há uma linda floresta. As pessoas entenderam que ali era um solo sagrado e que não deveria mais ser agredido. Recomeçaram sua vida em outros lugares. Só quem continua lá é D. Mati, encantada como a floresta.



*Da revista "Gotas de Paz", paráfrase de uma frase de Albert Einstein: "A natureza quando agredida não se defende, apenas se vinga"


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