Naquele dia eu estava muito feliz. Depois de tantos ensaios e buscas de espaços para tocar, um amigo me convidou para fazer o show de abertura na inauguração do bar que ele comprou.
Mas meu pai parecia não ter o mesmo sentimento, ele vinha pegando no meu pé há algum tempo e não perdeu a oportunidade de me desagradar:
- Puxa Michele, esse cara realmente é seu amigo. Mas ele não vai te pagar, né?
Não respondi e saí de casa batendo a porta como de costume, mas fiquei desestabilizada.
Paulo e eu já tínhamos tocado de graça em algumas festas. Ele estava desanimado. Afina, existem muitas bandas cover The Beatles e o fato de sermos uma dupla não nos rendeu muita coisa. Paulo estava procurando emprego e em breve, eu teria que fazer o mesmo, pois meu pai passou a me cobrar resultados. Eu já tinha passado dos 20 anos e aquele papo de dupla que um dia vai viralizar, começava a parecer papo de gente que não quer trabalhar. Em breve eu terminaria aquela faculdade chata e não teria mais desculpas.
Como de costume, cheguei a casa de Paulo com um cigarro apagado na mão, pois ele implicava com meu vício. Paulo estava deitado no chão e olhava fotos antigas no celular. Ouvia nossa playlist favorita que começava com Yesterday. Falei com ele que seria melhor conversar com nosso amigo e desmarcar o show. Não sei se ele fez contato com a profundidade da minha dor, mas Paulo simplesmente respondeu:
- Que saudades de quando tocávamos somente por diversão.
Sei lá se acaso existe, mas nesse momento, ele encontrou uma foto de quando ficamos em primeiro lugar no Concurso de Talentos da escola. Ficamos muito felizes e viramos as estrelas da turma, todos queriam falar com a gente. Naqueles dias, tivemos um gostinho do prazer de estar no palco e do sabor do sucesso.
Logo depois fizemos nossa primeira música que falava dos dias febris, numa alusão a um filme e aos dias quentes do Rio de Janeiro, nos quais insistimos em usar roupa preta. Mas a música falava sobretudo da nossa paixão pelas músicas dos Beatles que sempre alimentaram nossas almas.
Numa noite tocamos nossa música no fim de uma festa e um velho bêbado falou:
- Essa tocou meu coração. Vocês são demais!
É lógico que o senhor tinha bebido demais. E quando me lembrava disso, parece que Paulo leu meu pensamento e me mostrou a foto daquela noite. Estávamos abraçados com o bebum, acho que também bebemos demais. Mas depois daquele evento, começamos um papo chato sobre criar uma identidade e passamos mais tempo compondo.
Acho que isso tirou o foco de nossos ensaios. O fato é que no momento que começava a me criticar mentalmente, tocou Yellow Submarine. Paulo se levantou do chão e dançamos como crianças, perdendo o foco de nossa tristeza. E depois da música e de muitos risos, Paulo resolveu me perguntar:
- Por que a gente não constrói nosso próprio mundo?
Eu aproveitei para debochar:
- Tá me pedindo em casamento?
Só para me provocar, ele colocou Michelle para ouvirmos, ajoelhou-se diante de mim e respirou fundo:
- Quero ter todos as minhas filhas com você. Vamos continuar compondo nossas canções?
Eu sabia que era mentira, Paulo me trairia com o primeiro compositor que apresentasse uma melodia interessante, mas não resisti. E começamos a compor brincando com o som das palavras amizade, simplicidade e no fim falávamos em morar numa cabana para tocar até morrer.
A mãe de Paulo que era nossa fã, estava na sala e gritou:
- Toca outra vez?
Acho que foi nesse momento que tivemos a coragem de amadurecer, entendemos que precisávamos buscar novos caminhos. O jeito era continuar compondo. Tínhamos que aceitar a verdade: mesmo com todo o nosso amor pelos Beatles, éramos compositores e adorávamos tocar nossas próprias canções.
Logo depois desse dia, fomos convidados para tocar numa feira na escola do meu irmão, foi uma ótima oportunidade para testar as músicas novas. Fomos chamados para outros eventos pequenos. E foi assim que entre uma composição e outra começaram nossas noites de som, onde passamos a apresentar nossas composições.
Agora não sei se estou feliz, sei apenas que estou muito nervosa, com o cigarro apagado na mão, sentada ao lado do meu amigo. Pela primeira vez, estamos num camarim com uma placa com nossos nomes e enquanto discutimos sobre formar uma banda, esperamos o show começar.
Rosa Scarlett
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